segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Tasca do Zé da Bola

Pragal- Almada

Apetecia-me falar do Ze Bolas sem dizer ao certo onde fica. Resultava num segredo bem guardado, como pertence aos lugares de culto privado, onde não queremos intrusos que nos estorvem, nem lugares ocupados que nos empecem.
No entanto, enquanto não abordo - fica prometido - uma sequência de restaurantes de outro registo, recursos e palamenta, e tirando a alma de egoísmos, falarei hoje dessa humilde tasca.
O Zé da Bola, também conhecido por Zé Bolas é um ícone almadense. Oriundo do distante Cercal do Alentejo, depois de uns anos trabalhando nos estaleiros navais, estabeleceu-se no Pragal com uma tasca, parece mais que para fazer amigos do que sinceramente para gerir restaurante a sério ou criar riqueza.
São assim as tascas de Portugal no seu melhor e pior. Barulho e confusão. Frequência livre, por vezes heterogénea e complicada, mas normalmente uma espécie de bodo aos pobres, de ambiente alegre e rigorosamente democrático e popular, onde todos, sentados ao lado uns dos outros, ficam sem estigmas sociais de privilégio, riqueza ou favor.
O Zé grelha. Grelha tudo. Não dorme, o homem. Vai buscar o peixe ao Marl bem cedo, para apanhar a melhor escolha, e por vezes, eu sei, dorme o resto da noite na carrinha, escabeceando de sono e cansaço, para que ao almoço o peixinho esteja nos conformes para o cliente.
-Quais molhos? -Perguntou-me um dia, com os olhos cândidos de um viver simples e dedicado aos amigos.
-Tudo grelhadinho aqui ao ar livre! Acrescentou. Arriscando a multa, chova ou faça sol, diria eu.
Charcoal de carvão. Ocupação de espaço sagrada, numa curiosa carroça de chapa com rodas que até tem sistema de roldanas para afinar a altura da grelha à brasa e que recolhe a um chapéu alto em dias de chuva. Mas sempre lá, o churrasco do Bolas. Um dia poderá estar proibido neste surpreendente país de novas leis. O povo chama-lhe brasa. Brasa eterna. Sistema simples, sempre igual. Mas receita de saúde, dizem os entendidos.
Carapau, por vezes mais chicharro que carapau, dourada da treta é certo mas o que fazer, posta de boa corvina, lulas, chocos, salmão, peixe-espada negro do melhor, e as infalíveis sardinhas no tempo delas, perfumando o bairro. As batatas vêm cozidas com pele, lá de dentro da exígua cozinha, com a salada e a sopa. O comensal ainda tem direito a uma sobremesa e pela refeição completa paga, até ver, 8 euros, se tiver lugar.
Eu adoro aquela esplanada do Bolas. Passa o cigano que nos tenta vender um Breitling genuíno por 20 euros e o senhor da funerária, sempre simpático, que nos oferece isqueiros e calendários com frases alusivas à vida e à morte em tons sempre perlados de um humor que recolhe em mim alguma perplexidade.
Passa o artista, o policia, o professor, o reformado e o engenheiro, apressado no intervalo das obras, escolhendo entre a sandes sem graça e a refeição convencional. Ali, nada é convencional. Por vezes os próprios clientes ajudam no serviço, entre o trocativo e o desenrascado do outro Zé, do Rafa e da Lucina. Ali tenho a sensação de sermos todos amadores e solidários. Girissimo. Cada dia é uma nova performance, uma peça do Teatro-vida acontecendo. Todos juntos, todos iguais. Povo no seu melhor.
Aparcamento complicado. Simpatia e fumo à discrição. Pena aquela pequena esplanada não me caber em casa. O Zé Bolas cabe seguramente no meu coração.

Resumo:
Sala/Mobiliário *; Porções ****; Tempo de espera ****; Confecção ***; Serviço **; WC *; Estacionamento *; Paisagem/Ambiente *; Grau de satisfação geral ***
Preço $

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Restaurante Porto de Abrigo

R. dos Remolares,18
Lisboa

Numa outra geração e noutra encarnação, eu frequentei muito assiduamente este Porto de Abrigo. Uma noite destas, resolvi voltar a franquear a porta dessa velha referência de minha vida passada e de um certo viver marítimo e portuário lisboeta. Continua a ser o Cais do Sodré no seu melhor, por onde passa e pastoreia a mais activa e influente import-export business people. Local de transitários, armadores e despachantes, onde tantos negócios e embarques são decididos, sobretudo ao almoço.
Talvez ali pela primeira vez, se tenha decidido numa qualquer mesa, importar roupa da China, ainda antes das lojas de trezentos; talvez dali houvessem raiz tantas modas que inundaram o Pais, desde sapatos a bonecos. Decerto, um dia, se aquelas paredes falassem, a história do que se consumiu e foi moda neste país pudesse fazer-se com outro rigor e esclarecimento. E dos fantabulosos lucros envolvidos também.
Mas entremos. O ambiente é naval, como se de uma messe de um navio se tratasse, com lambril subido de madeira alta e cadeiras de mogno rijas e maciças. As mesas mereciam toalhas de pano sem cobertura de papel. Se pedir guardanapos de pano, contudo, trazem-lhos sem hesitação.
Comi umas gambas em caril de boa fábrica (há milhentas receitas de caril, como se sabe, que podem levar mais ou menos cravo, gengibre, piri-piri, açafrão, etc.) e um pato com molho de azeitonas e esparregado. Estiveram ambos bem. O caril - encorpado e bravo, sem exagero de gambas, mas em quantidade aceitável; e o pato - bem-disposto e caseiro, receita antiga que não perdeu a mão. Reencontrei o gosto e a memória, o que é sempre reconfortante.
Há ainda, entre muitas outras coisas, um polvo que recomendo, uma vieira de fabrico caseiro muito agradável e um outro pato mais normal, digamos assim. Este pato que degustei apresenta-se completo. Isto é, disfarçado com o molho de azeitonas, o bicho incluía os miúdos e as peças vinham com a saborosa pele. O pato no seu esplendor. Porque os arrozes de pato que habitualmente se comem, infelizmente apenas incluem a fibrosa zona do peito, onde justamente o palmípede menos saboroso é. E recorre-se depois ao chouriço para dar a alegria, o colorido e a gordura que, afinal, a simples pele do animal poderia com vantagens propiciar. Aqui está, portanto, uma receita antiga da mais velha culinária regional com todas as regras do sabor autêntico respeitadas.
Era tarde e as sobremesas já estavam muito esgotadas do almoço. Destaco as peras bêbedas, os pudins, brigadeiros, barrigas de freira, mousse de manga, etc
Carta de vinhos escassa mas funcional. Corrijam por favor o Muralhas de Monção que está mal escrito com s, pois tanto o produto, como a simpática vila minhota merecem essa correcção.
Estacionamento entre o muito difícil e o impossível. Fecha aos domingos.
Visita fortemente recomendada.O Porto de Abrigo continua a ser um porto de abrigo.

Resumo:
Sala/Mobiliário ***; Porções ***; Tempo de espera ***; Confecção ****; Serviço ***; WC **; Estacionamento *; Paisagem/Ambiente **; Grau de satisfação geral ****
Preço $$$