quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Restaurante o Cortador Oh Lacerda!

Restaurante Cortador Oh Lacerda!

Av. Berna 36 – A

1050 Lisboa

Há espaços de restauração que mereciam a classificação oficial de museus particulares. Pela qualidade, pelo ambiente, pelas peças expostas, pela decoração e pelo coleccionismo patente do anfitrião. Pela beleza e aconchego do espaço destinado aos comensais; pela história de tantos dias e noites e respectivas conjurações, negócios, amores e desamores que dali houveram raiz e discussão; pelo prazer de uma noite especialmente convidada; por evocação de nós mesmos, noutros tempos mais recuados; por tudo isso, o oh Lacerda! é um espaço assim, que existe em Lisboa, meio escondido numa porta discreta, frente à sede da Gulbenkian, na Av. de Berna.

Conheço o Restaurante há uma vida. Nascido do que foi outrora um talho, aproveitou com saber a sinergia desse culto, instituindo um bife à cortador de grande celebridade, putativamente em vigor desde 1943. Não posso garantir, não era vivo ainda…

Contudo posso confirmar a sua qualidade e não me custa considerá-lo como um dos históricos bifes de Lisboa, a par - para mim - com os mais conhecidos do Ribadouro, Trindade e Portugália – que se tornaram produtos de qualidade estandardizada, por vezes duvidosa e típicos de cervejaria - mas sobretudo a par com o da Casa York, ainda no activo e recomendável, segundo julgo. Outros haverá.

Falo do que sei em relação ao bife, mas garanti-vos uma isenção que, por vezes, me custa manter, quando as coisas não correm bem. Quase prefiro o silêncio quando algo desacertado acontece. Mas prometi a mim mesmo que não era por isso que deixaria de dizer a verdade. E não contem comigo nunca para desconstruir por gosto, mas também nunca para tecer loas por simpatia. Lamento, mas a verdade acima de tudo, ou não estaria a fazer critica gastronómica séria. As coisas na minha última visita, é um facto, não correram totalmente ao nível exibicional a que estava habituado no velho Lacerda.

A casa continua a ter um Senhor na sua gerência, o ambiente geral é descontraído, mas elevado e de charme, as molduras com colecção de notas de todo o mundo são impressionantes, o ar um pouco retro ajuda a enquadrar o espírito, a iluminação é sábia. O pão saloio vem de Mafra e vai à mesa em saca de pano, enfim, um espaço evoluído e sabedor da velha escola de restauração lisboeta. Uma sala não muito grande, mas nobre e simpática, de imensos pergaminhos.

Entradas a gosto, sobretudo paiola - óptima, de cura leve - e queijo de ovelha. Uma garrafeira completa, muito extensa, com divisão bem feita por regiões e donde escolhi um tinto Monte das Servas que cumpriu e constitui uma boa solução, sem entrar em preços proibitivos.

Acompanhado que estava, foram pedidas pataniscas e arroz de pato. Porém, as pataniscas - embora nos garantissem que feitas ao momento – estavam algumas de massa crua, outras passadas de mais, vieram frias e com pouco bacalhau, numa primeira surpresa negativa da noite. As pataniscas de bacalhau têm de ser uma festa desbragada de sabor e regionalismo. Uma festa portuguesa. Estas não.

O arroz de tomate que acompanhava estava de boa confecção, embora fosse seguramente aquecido do almoço, tal como o arroz de pato, saboroso e equilibrado, mas sem deslumbrar.

Nas sobremesas optei por uma tarte de maçã e passas, que cumpriu e estava muito bem confeccionada.

O serviço foi, como sempre, atentíssimo e cheio de charme, na maior parte das vezes pelo próprio anfitrião. Um cavalheiro.

A merecer sempre uma visita, como espaço de referência e restaurante emblema de Lisboa, mas a carecer, sobretudo aos jantares, de uma revisão de consciência na forma de preparo, apresentação e aquecimento das doses.

Estacionamento em parque subterrâneo pago, não muito longe, senão… impossível.

Resumo:

Sala/Mobiliário ****

Porções***

Tempo de espera ***

Confecção ***

Serviço ****

WC ***

Estacionamento **

Paisagem/Ambiente ****

Grau de satisfação geral ***

Preço $$$

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O polvo unido jamais será vencido!

Temos uma das mais gulosas e saborosas gastronomias do Mundo.

Corri já a minha parte dele para o poder afirmar. Sou, além disso, dotado geneticamente de uma aristocracia de palato e gosto requintado, o que me permite distinguir uma vieira fresca de outra congelada, e apreciar águas e outros mais encorpados líquidos com a certeza de um golpe, o critério de um mestre e o sentido crítico de um gourmet.

Nas horas vagas, impenitente e mártir, cozinho. Entro nessas ocasiões em elevado transe laboratorial, produzindo ácidos úricos, colesteróis e outras magias alquimistas, sápidas e nocivas, de que tento ter tempero, punho e rédea, mas de que também não enjeito nem o pecado nem o sabor.

Somos todos dessa mesma matriz, mesmo os enjoados da vida. Somos portugueses.

Há sabores nacionais que são, de certo modo, uma afirmação de nossa diferença e individualidade. Do próprio património cultural.

O bacalhau e as suas mil e uma formas de cozinhar, a sardinha assada com pimentos, as conservas de atum, as caldeiradas, os presuntos, as artes de fumeiro e salmoura em geral e tantos outros hábitos alimentares, enraízam fundo no cromossoma do povo e integram uma idiossincrasia, uma gesta, uma escolha, um espaço próprio. Uma afirmação nacional.

O gomoso e magnífico leite-creme da minha avó, queimado de açúcar amarelo com o velho ferro de tostar, seria hoje considerado um perigoso produto alimentar, capaz de matar qualquer um e de encerrar um estabelecimento de prestígio como o Tavares Rico.

Paralelamente, os queijos que o pastor João Serra faz em Alcafache, escondido na sua queijeira clandestina – para chamar nomes pomposos ao tugúrio onde os cura… – são mais saborosos que os serras autorizados, fabricados em cozinhas de alumínio e inox. Porquê, não sei. Mas são.

A minha velha faca de bocas pronunciadas, de tão gasta e afiada na mó de argila, aquela mesma que levo para toda a parte quando é suposto cozinhar, e que me dá confiança no descasque e eficácia no golpe, essa, nem pensar em cozinhar com ela. Está fora da norma e não é mais que um pedaço de lixo, na óptica oficial de quem inspecciona as cozinhas desse país secreto e perigoso. Porque, por trás do sorriso farisaico do chefe de sala, lá nos recônditos e sinistros bastidores de tenebrosos restaurantes...há sempre atentados que desconhecemos - comida podre, facas duvidosas, aventais por engomar.

Daí tornarem-se urgentes medidas drásticas.

Com efeito, as mãos de vaca com grão, por exemplo, terão de acabar. Está provado que as vacas não usam protecção nas patas durante o seu pastoreio o que indicia hábitos conspurcados e de péssimo futuro. O mau hábito de defecarem para baixo permite um convívio íntimo das fezes com as citadas patas, pelo que muitas delas mostram sintomas de inflamação interdigital não combatida. O próprio grão não foi calibrado de acordo com a escala de programação, cor, emissão de CO2 e medidas autorizadas pela CEE.

Teria, de resto, de fazer-se um curso – de difícil aceitação e tolerância às autoridades europeias que superintendem a higiene do que comemos – para lhes conseguirmos explicar que neste país comemos pezinhos de coentrada, bucho recheado, dobrada com feijão branco, tripas grelhadas, enguias de ensopado, alheiras de caça, perdizes mortas de véspera, passarinhos fritos, patos e galos caseiros de saúde nunca controlada, mioleiras, ovos não carimbados postos por galinhas deseducadas e pica no chão, couves do quintal, batatas e feijões igualmente sem inspecção botânico/sanitária, azeitonas apanhadas directamente das oliveiras e não compradas em frascos, chouriços e morcelas de sangue defumados no nosso fumeiro de azinho, presuntos provenientes de porcos em vida provavelmente nauseabundos, vinho pisado com os pés, queijos de origem em leite proveniente de tetas duvidosas e, por vezes, coagulados com um cardo bravio que há nos montes, sandes de courato vendidas em carripanas, sem o mínimo de condições, à beira da estrada, com os carros a passar ao lado, em dias de futebol!

E explicar-lhes que, contudo, sobrevivemos. Morreriam de susto.

Mas há mais.

Juntemos os bolos e barquilhos da caixinha mágica da praia, os gelados que ao fim de uma manhã de areal já estão mais desfeitos que a neve em Agosto, castanhas assadas em carvão no meio dos cavalos da Feira de S Martinho, a neve doce tão pedida pelos miúdos, aquela que é enrolada no pau em feiras e romarias pelo país fora, e as farturas e churros feitos na frente de toda a gente, sem higiene nem preparos, cheios de óleo e canela duvidosa, embrulhados em papel pardo, rasgado sem norma nem preceito.

Juntem-se os saborosos e nojentos caracóis, apanhados nos mais inverosímeis sítios, inclusivamente cemitérios; os percebes; as lapas, cadelinhas, berbigões, ouriços e mexilhões roubados na maré baixa, em areias e rochas, repletas de um fétido cheiro a algas e a mar.

E, por fim, os próprios sargos, robalos e restantes peixes, apanhados a comer a babugem por inconscientes pescadores à linha, que arriscam a vida em erectas falésias, e que não cumprem, obviamente, as mínimas normas de segurança alimentar, pois alimentam-se de restos e despejos naturais e marítimos não controlados, de proveniência tão sórdida que até me escuso a comentar.

Da carne, nem sequer falo. Nenhum nutricionista a recomenda, nem há matadouros onde o sacrifício das rezes seja precedido dos actos religiosos recomendáveis e piedosos. O pecado da carne estará para sempre banido do nosso viver. Só argentina e congelada. Ponto. Parágrafo.

Feche-se o país e comamos todos… não sei…talvez pão. Mas do embalado, de origem escandinava, em tostas integrais, vacinados contra a gripe e tudo.

O pão do Alentejo será proibido em breve. Só em forno eléctrico.

O forno a lenha tornar-se-á um objecto de museu.

Decorrente disso, cabritos de todos os montados: – respirem de liberdade!

Pargos no forno: - a vossa hora é de vitória!

E também vós, couves e alfaces da horta própria, espigai à vontade – não podeis ser consumidas. Estais finalmente livres!

Adeus sabores de Portugal. Europa oblige.

Tias velhas, avós, mães, enfim, todas vós, hábeis, exímias cozinheiras, – acabou tudo! Agora fazei costura.

E nós próprios cozinheiros e amantes do viver, Epicuros serôdios e insensíveis. Devíamos ter era vergonha.

O país regressa dentro de momentos, num outro século qualquer.

Quem quiser associar-se, junte a sua à nossa voz.

Preparemos a passagem à clandestinidade

Eu por mim, de resto – nisto e naquilo – também já sou clandestino há tanto tempo que nem estranho...